quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Orelha do livro Lírico renitente¹:

“O leitor que não espere desatar o riso fácil; que não aguarde o afago dócil do sentido mais rasteiro; que não creia que tudo é flores na poesia. Pois este livro, o primeiro de Marcelo Sandmann, não está à espera de leitores ávidos por emoções passageiras. A não ser que, na sua instantaneidade, as emoções aflorem com a força de uma ferida aberta, de uma “exposição de vísceras”. Mas o que elas significam? Como os áugures antigos, será preciso que decifremos essas vísceras.

Poder-se-ia dizer a princípio que Marcelo Sandmann estabelece geografias; a do corpo (próprio e alheio), os seus detalhes, relevos, secreções, tiques; a da cidade, onde desponta um universo de seres muitas vezes espiritualmente aleijados (dentre os quais, algumas das personae do poeta). Do corpo, especialmente, tratam os seus primeiros poemas; dos “pezinhos amputados” de uma certa bailarina; dos desvãos do corpo da amada, com seu “cipoal de nervos tensos”; dos ombros, esses “espasmos obscenos de asa”. Daí se origina o caráter lírico dessa poesia: o descortinas da intimidade (veja-se “Axiais”), a exposição das vísceras, das feridas.

Na medida em que se entrega ao lirismo, a poesia de Marcelo Sandmann vai também abrindo um veio satírico, com todos os gumes da ironia: entre “O engenheiro embriagado”, alfinetada no poeta dito rigoroso (em si próprio, diga-se), e o “Freudista recalcitrante”, vemos desfilar uma galeria de seres e de situações risíveis, num universo à beira de uma outra Curitiba, a de Dalton Trevisan, com quem Marcelo “bebe um conhaque” nas séries “As coisas da casa” e “Daltonianas”, cujos poemas se abrem ao exercício da narrativa curta: “a raiva invadiu a casa/ numa labareda violenta. // Crestou tudo!// Agora os dois carregam baldes de água/ para dentro, / espionados pelos vizinhos...” .

Mas admitamos: a exposição da intimidade e a derrisão irônica (e, por vezes, sarcástica) não são o único interesse da poesia de Marcelo Sandmann. Nela há lugar para que o erotismo possa “rugir afoito”, como em “Tríptico do amor elíptico”, na forma de um amor que é ao mesmo tempo pânico e desejo. Sobretudo nos últimos poemas – abandonando a concisão e o estilo elíptico do início do livro, marcas de um leitor aguçado da poesia de José Paulo Paes, admitindo inclusive formas clássicas, como no excelente “Primeiro (e último) soneto bolorento” -, Marcelo Sandmann alarga os horizontes da sua poesia, dando voz (e imagem) a outros seres e paixões: a criança, a música (os músicos), e o próprio poeta que assume o canto.

Marcelo vai então manifestando paulatinamente uma dicção menos sibilina, e mais (dis)cursiva, mais cantante: “voltar a cantar o que é claro / com um verso muito claro”. Aliás, “Poética negativa” já estabelece uma cisão bastante clara entre os primeiros poemas e esses últimos: “não quero a palavra mutilada: / autópsia incisiva, / vísceras reviradas.”

Será preciso (espero) retomar algumas vezes a leitura deste Lírico renitente, deste lírico que teima em fazer poesia num mundo de pouquíssima poesia. Sem saber de antemão qual a recompensa que ele nos dá no fim das contas: as vísceras reviradas ou o embalo do acalanto.

Ao leitor, pois, as batatas; ou os poemas.

Adalberto Müller Jr.”


1 – SANDMANN, Marcelo. Lírico renitente. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.


...





Primeiro dos seis vídeos do especial para TV Acorda + Poesia, de Rogéria Holtz, em cujo conteúdo a poesia contemporânea curitibana é cantada e falada.


Neste especial, alguns trabalhos do Marcelo Sandmann e o próprio poeta marcam infatigável presença.

As seis partes do especial estão em: http://www.youtube.com/view_play_list?p=637A41C5DD94B093

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