sábado, 12 de dezembro de 2009

Resenha de Enquanto velo teu sono / Diário Catarinense - caderno Cultura (29/05/04) / Correio Brasiliense - caderno Pensar (26/06/04)
ADALBERTO MÜLLER: A TRADUÇÃO DA MELHOR TRADIÇÃO Ricardo Pedrosa Alves

Enquanto velo teu sono é um livro de afirmação. Se na primeira publicação, em geral os poetas apenas praticam a gestação, é na segunda que a legitimidade deve se configurar. É preciso ser mais poeta no segundo livro. E Adalberto Müller consegue, ao usar palavras para escrever coisas que nem sempre podem ser postas em palavras: configura-se aí o poeta, não mais em gestação.Paulo H. Britto, na orelha do livro, assinala que "não há melhor laboratório para a criação poética do que a tradução de poesia. O trabalho de recriar no seu próprio idioma a experiência poética vivida numa língua alheia apresenta ao poeta-tradutor todos os problemas formais da criação poética, fornecendo-lhe apenas um ponto de partida de natureza já textual, o que nem sempre é o caso quando se trata de compor um poema novo". A questão é até que ponto este privilegiado exercício de técnicas não implica apenas na construção de poesia de gabinete, uma poesia de CDF's. Adalberto lançou traduções de poetas franceses, ingleses e alemães. Sei também que é perito tradutor de cummings. Escreve muito bem em francês e em espanhol. Insere-se numa tradição, a da origem da nossa poesia. Para quem não sabe, o primeiro livro impresso por um brasileiro, em se tratando de poemas, foi "Música do Parnaso" (1705), do baiano Manuel Botelho de Oliveira, que trazia versos, além dos em português, em latim, em espanhol e em italiano, ou seja, uma obra latino-ibérica.Quero falar da tradução da tradição, o que implica em ver o momento atual (dos anos 80 para cá) como de revaloração da nossa herança poética (menos que a incorporação de novos repertórios): o momento anterior representou o amálgama entre poesia e produção crítica (mais a produção de traduções), além da conquista do rigor, da revisão do modernismo a partir do concretismo e da abertura às outras linguagens, seja a visual ou a musical. Ler a tradição para a transgredir foi o que as vanguardas impuseram aos poetas seguintes. Estava criada a tradição da transgressão. Vamos analisar como a leitura da tradição operou nos poemas de Adalberto Müller (sintomático: agora o autor extraiu o "Jr." que o acompanhava no primeiro volume, como um ato falho de excessiva postura de discípulo, já superada).Importa-nos assinalar o aprendizado desta outra faceta da tradução poética (a leitura criadora), não a que se faz entre duas línguas, mas a que se dá entre duas ou mais linguagens, a tradução da tradição. Se no primeiro livro, a plaquete Ex Officio (1995), é cansativa a postura rebarbativa de aluno de João Cabral, principalmente a overdose de aproximações poéticas à pedra enquanto vórtice, se ali não se tinha muita esperança de um poeta vigoroso, no segundo isso acontece. Ser aluno de João Cabral em si não é um mal, ser só aluno é que é mal. E foi até um pecado comum. Benedito Nunes, analisando a poesia dos anos noventa, disse sobre a matriz daquela geração: "a influência maior é seguramente João Cabral de Melo Neto, imitado, glosado e assimilado".Agora, em Enquanto velo teu sono, as imagens saem do João Cabral-clichê-pedra para lerem o melhor João Cabral, o das imagens surrealistas da primeira fase, como na "Pedra do Sono" (1940-41), em que sonhos de insone trazem imagens como brumas do pensamento. O sono, o silêncio, o oco. Também há na primeira fase de João Cabral o frásico, o que o aproxima, neste período, aos poetas de expressão francesa Michaux e Francis Ponge, (de quem Adalberto Muller também é cultor: traduziu de Ponge "Le parti pris des choses"). É o melhor Cabral e o melhor Müller, pois vê com olhos de Picasso e monta os poemas quase como no cubismo da fase azul do artista plástico, onírica. Nesse sentido, o livro de Adalberto essencialmente rompe a oposição entre criação e crítica, como fazem desde sempre os melhores poetas. Ao traduzir também linguagens, o ganho em originalidade é estabelecido, pois provém da melhor origem. Percebo isso na série que dá título ao livro. No poema "Enquanto velo teu sono", trata-se de passar ao lado da lembrança daquilo que foi esquecido. Lembrar-se do que não pode ser esquecido porque não foi inscrito. É possível ? Trata-se de uma presença que o espelho não pode refletir, mas que o quebra em migalhas. Algo fora do espaço-tempo, como na metáfora. Nesse sentido, um certo alheamento, um certo desterro seriam condições ideais para a melhor apreciação do livro do poeta de Ponta Porã, nascido em 1966. Trata-se da busca de uma presença fora do espaço-tempo, ou seja, algo que ainda não é presente ou já não é presente. Os últimos versos do poema:
A cama toda se alagandoentra por meus olhos cheiosdo líquido que derramamteus cabelos.
É preciso saber dosar a beleza. Não perfumar a palavra flor. Certa beleza excessiva e flácida me irritou no livro. O pendor pelo preciosismo, baseado numa tendência ao culto do "elevado" como legitimação do poético. Às vezes fica meio livresco, com cheiro de dicionário (a poesia de CDF's). Em entrevista no livro Musa paradisíaca (2004), o próprio poeta afirma que a tradução o levou a inúmeros dicionários, "que hoje são meu escudo contra a facilitação ou contra o falseamento da expressão a que a língua - no estado em que a herdamos - nos condiciona". Mas nem sempre dicionário demais é bom, soando às vezes como a facilitação (citação gratuita) que deveriam combater. O carioca Carlito Azevedo, de dicção poética bastante próxima da de Adalberto Müller, adverte para o culto da cultura em detrimento da vivência, do culto da experiência, como característica dos poetas de nossa geração. Os poetas atuais estariam vivendo experiências de laboratório, de gabinete (caso em que também se poderia enquadrar Carlito Azevedo). Se não é sintático este culto do "elevado" em Adalberto, ao menos é vocabular, o que torna muitas vezes piegas as palavras 'poéticas pela própria natureza'. Perfuma-se a palavra flor. Ocorre que cada palavra (à diferença do timbre, na música, ou do matiz, na pintura) traz em si uma história: como então conseguir a apresentação num poema ? A solução kantiana é a da evocação (apresentar o inapresentável), ou seja, uma apresentação negativa. O que é sublime é que ocorra (o poema) em vez do nada. O sublime é agora e é na contenção que o grandioso se apresenta. Mas a contenção já se aproxima na poesia de Müller. Percebo uma dicção mais contida, talvez influência de Paul Celan (e de cummings, outro exímio montador pós-cubista) e a busca das palavras essenciais, não supérfluas ou superficiais. Talvez seja este um grande novo caminho que se abra, embora o surrealismo também possa eclodir em sua poesia futura, pois o poeta aprecia a lucidez, embora de porre, como nos adverte no início do livro. A melhor poesia que Adalberto pode nos legar é a que procura a melhor tradição, conseguindo liberdade para construir seu próprio caminho poético, tratado de forma emblemática no poema como no poema é pura.

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